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Não há remédio possível, é necessária uma vacina



A análise detalhada da história econômica é implacável. E nem é preciso ir tão longe. No passado recente, foram frequentes as vezes em que os governos brasileiros cederam às tentações eleitorais curto-prazistas, interessadas em resultados e feitos econômicos quase mágicos – e, por isso, ilusórios. Desde os fracassados planos de estabilização lançados nas décadas de 1980 e 1990 para fazer frente à significativa inflação herdada do crescimento mal planejado proveniente do “milagre econômico” (o qual, aliás, provou, assim como tudo em economia, que não há “milagre” possível) até a irresponsabilidade fiscal convertida em política durante o primeiro mandato da ex-presidente Dilma Rousseff, muitos foram os exemplos de má gestão econômica, com os quais parecemos não terá prendido tanto.


Hoje, mesmo após os penosos esforços em direção à maior racionalidade econômica, iniciados durante o governo Temer, o país se encontra numa relevante encruzilhada fiscal. Diante da grave crise sanitária e econômica que se alastrou pelo país com a pandemia do Covid-19, foi necessária a elaboração, por parte do governo federal, de um conjunto amplo de medidas emergenciais voltadas à proteção da vida e da saúde das pessoas, bem como à preservação de empregos, renda e empresas. A maior parte dessas medidas envolveu aumentos de gastos e/ou perda de receitas tributárias em magnitude considerável. Segundo dados do Ipea, o déficit primário acumulado nos oito primeiros meses do ano alcançou 12.15% do PIB, ante menos de 1% do PIB em igual período de 2019. Para agravar esse cenário, a inflação de setembro, medida pelo IPCA, atingiu 0.64%, maior patamar desde 2003. O câmbio, por sua vez, encontra-se bastante desvalorizado, pressionando os custos de matéria-prima e a cadeia de fornecimento across the board. Como nas fórmulas econômicas convencionais, atestadas pela história, dívida pública elevada + crise econômica + desvalorização da moeda = inflação, duas perguntas naturalmente emergem: temos, de fato, risco iminente de descontrole inflacionário? Se sim, como resolver?


Para a primeira questão, a resposta é sim. Para o médio-longo prazo. Conforme mencionei em texto anterior, a dívida pública elevada é inflacionária tanto pelo canal das expectativas (as remunerações de títulos são atreladas às expectativas de inflação), quanto pela maior percepção de risco de default associada ao governo emissor. O resultado é um prêmio do duration dos títulos mais elevado e uma dívida encurtada, situação em que a política monetária como tentativa de conter a inflação começa a ficar pouco eficaz, já que (i) uma potencial elevação dos juros viria acompanhada deum efeito renda tanto maior quanto maior o montante da dívida e (ii) a elevação dos juros elevaria o próprio serviço da dívida do governo. Hoje, já estamos vivenciando processo de “reinflação” da economia, cujos sintomas se manifestam, primeiramente, pelo câmbio e pelos preços diretamente ligados a ele, para, em seguida, atingir as expectativas.


Com relação à segunda pergunta, a resposta é mais complexa. Como é conveniente fazer quando estamos diante de questões complicadas, vamos revisitar brevemente a teoria formal. Imaginemos, de modo simplificado, que o governo tem déficit (d), composto por déficit primário (p) e serviço da dívida (rb), tudo como proporção do PIB, e financia esse déficit (d) com uma combinação de endividamento (db/dt) e seigniorage (s). Sendo a demanda por moeda (∅) uma função negativa da taxa nominal de juro, a dívida varia no tempo de acordo com:


Enquanto a inflação se comporta tal que:


Da derivação, no tempo, de b e , vem:




Assim, temos:




No caso da economia se encontrar numa situação estável no ponto A, com dívida b0 e inflação π0 e, num certo momento, o governo passa a gerar um déficit primário, a curva é deslocada para baixo (agora ela corta o eixo horizontal). Observe que um aumento da taxa de juro real sobre a dívida pública teria efeito semelhante. O financiamento do déficit primário força o governo a aumentar tanto a taxa de inflação quanto a dívida, transitando para novo equilíbrio no ponto C, por exemplo. Este novo ponto ainda é estável, com taxa de inflação mais alta e dívida pública maior.

Entretanto, suponha que a situação inicial da economia é o ponto B, com dívida sustentável b0, mas inflação instável π. Se o governo gera um déficit primário, não há financiamento possível e a economia vai para uma hiperinflação e/ou uma depreciação da dívida (default). O ponto D – situação semelhante à vivida hoje no Brasil, embora estável, leva ao mesmo resultado, pois, em D, a dívida é maior do que o valor máximo sustentável na curva mais baixa. Nesses casos de instabilidade, a economia caminha inevitavelmente para uma hiperinflação e/ou para um default sobre a dívida pública. Dado um cenário de default, o retorno à situação de estabilidade exige uma “reforma fiscal”, de forma a assegurar que, no futuro previsível, não haverá novos déficits.

Portanto, se, de um lado, a comunidade científica debate extensivamente a elaboração de uma vacina para frear o avanço e a duração da pandemia do Covid-19, para o vírus (de potencial epidêmico) da dívida pública elevada, a literatura econômica tem o imunizante necessário: a reforma fiscal. Tal qual na medicina, não há remédio paliativo que funcione eficientemente para problemas estruturais, de modo a prevenir sua frequente aparição. Para o caso brasileiro, a vacina da reforma fiscal, talvez não de dose única, é necessária. Considerando o futuro próximo, essa deve ser a preocupação primordial; só assim, haverá futuro possível. Na saúde e na economia.


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