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Uma Europa unida pelo arraso




A União Europeia, composta por 27 países, foi o único bloco econômico supranacional que, para além das já tradicionais supressões de barreiras alfandegárias e a adoções de tarifas externas únicas, propôs a integração monetária entre seus membros, com a utilização do Euro. Desse modo, a anterior situação de competitividade entre os países europeus que prevalecia desde o início da Era Moderna, e que foi causa de tantos conflitos que transcenderam o plano europeu, foi alterada: num mundo onde muitas das antigas colônias já haviam até mesmo superado economicamente as suas antigas metrópoles, a cooperação entre os países europeus foi a única saída encontrada para a manutenção das suas, já reduzidas, relevâncias internacionais.

Contudo, não é nessa teórica homogeneidade e unificação que se encontram os principais problemas, e, como veremos adiante, importantes perspectivas econômicas do bloco. Pelo contrário, para além de sua localização em um mesmo continente, poucas são as características semelhantes presentes nos diversos membros dessa União, que se estende de países do Norte-europeu, como Finlândia e Suécia, que contavam com uma renda per capita de mais €40.000 em 2016, a países do Sul-europeu, como Grécia e Portugal, cuja renda per capita em 2016 não chegava nem a metade disso. Consoante com essa característica, o lema oficial da União Europeia é o famoso “Unidos na Diversidade” e por diversidade, nesse caso, leia-se a completa assimilação dessa desigualdade como algo intrinsecamente europeu.

Estas notórias diferenças regionais, que terminam por provocar a ocorrência de distintas avaliações de risco sobre os títulos de dívida nacionais, muitas vezes mascaradas pela existência de uma moeda única, foram uma das causas mais fundamentais das instabilidades que têm assolado o continente. Entre um desses episódios, está a crise entre os países europeus mais endividados em 2012, que colocou em cheque o monopólio sobre a emissão de moedas do Banco Central Europeu, instituição responsável pelo controle monetário do bloco. Se esses países endividados não tivessem transferido esse direito para o BCE, eles gozariam de uma maior flexibilidade para tomar medidas necessárias e que poderiam ter evitado eventos críticos dessa crise, como o default grego de 2012. Se os países com responsabilidade fiscal também não tivessem o transferido, eles não seriam obrigados a socorrer seus vizinhos sempre deficitários com resgates bilionários.

Outra importante consequência da criação desse bloco e dessas diferenças regionais encontra-se no setor turístico europeu. Desde antes de sua transformação em uma união econômica e monetária em 1993, a Europa já se atentava para a consolidação do turismo a uma escala continental. Com o Acordo de Schengen de 1985, firmado inicialmente entre alguns países do Oeste europeu e que posteriormente seria estendido para a maior parte da União, eliminaram-se, na prática, as fronteiras internas do bloco, favorecendo a atividade turística. A entrada de turistas aumentou, em média, 5% do ano de 1995, quando o acordo entrou em vigor, a 2016 e em 2010, os países europeus contavam com mais de metade da participação mundial do setor. Houve também, nesse período, a consolidação do turismo na cultura europeia, com mais de 30% dos europeus viajando ao exterior todos os anos e o aumento nos turistas de fora do bloco, que se aproveitam dessa facilidade de circulação e da necessidade de retirarem um único visto para visitarem os países da União. Dessa forma, nota- se que a possibilidade de desenvolvimento do setor turístico, além de motivar a criação desse

bloco e ser consequência deste, é um dos importantes fundamentos, cada vez mais escassos, que ainda justifica a existência dessa União supranacional.

No entanto, as diferenças regionais permitem a avaliação de certas tendências nesse setor, que concentra de um lado a França e a Alemanha, inseridos entre os países que mais gastam com turismo no mundo, e de outro Espanha e Itália, entre os países que mais ganham com essa atividade. Analisando os balanços do setor em cada país, percebe-se que os países com os saldos mais positivos, a Espanha, a Itália e a Grécia, estão inseridos no Sul-europeu e os com os saldos mais negativos, a Alemanha, a Holanda e a Bélgica, estão no Oeste-europeu, que conta com a segunda maior renda per capita do bloco. Desse modo, percebe-se um fluxo nesse setor com características geográficas e econômicas, com destino ao, relativamente mais pobre, sul.

Esses países pertencentes à Europa Mediterrânica possuem ainda o agravante de as atividades turísticas contribuírem de maneira muito decisiva para a sua economia se comparada com a média mundial. Enquanto Itália, Espanha e Grécia possuem respectivamente 12,7%, 14,6% e 18,7% do seu PIB atrelado ao turismo, a média mundial é de 10,2%. Por fim resta a grande dúvida: qual será o impacto da crise iniciada pela pandemia de COVID-19 para esse setor estável, mas de maneira alguma imune, às oscilações econômicas e a consequência para União Europeia.

Esse foi o setor que em 2012, auge da crise de dívida pública europeia e quando o PIB do bloco encolheu 0,4%, obteve crescimentos positivos em países profundamente afetados por ela como Grécia e Itália, auxiliando a contenção da crise, e o setor que na atual crise mais provavelmente será afetado. Quando os casos estouraram nos primeiros países europeus, a tão bradada cooperação entre os membros da União foi rapidamente esquecida e fronteiras internas ao bloco foram subitamente erguidas. As empresas aéreas, que correspondem a 57% das viagens internacionais mundo afora, foram as primeiras afetadas, com uma queda prevista de 55% de suas receitas.

Agora, com previsões da ONU apontando para um possível encolhimento de 80% do turismo se não houver uma rápida mudança nas medidas de isolamento, os países europeus lutam para reabrir suas fronteiras e tentar salvar a temporada de verão, relaxando ao menos as normas de circulação internas ao bloco, que correspondem por 72% das viagens internacionais para membros da União. Ainda que a estratégia seja bem-sucedida, os europeus perderam um de seus principais instrumentos para lidar com crises, justo em uma tida como a pior desde a Grande Depressão e que já resultou na proposta de criação de um novo fundo de resgate de €1 350 bilhões para auxiliar países e setores mais vulneráveis como o turístico. A Alemanha, por exemplo, tentando salvar seu setor de viagens, ofereceu um empréstimo de € 9 bilhões de euros para a Lufthansa.

Certamente, a dívida resultante será mais uma vez dividida de maneira equivalente entre todos os membros, sejam eles os responsáveis pela sua criação e com condições financeiras de arcar com ela ou não. Repetindo-se como farsa, a história certamente irá se encarregar de escrever se o destino dessa (des)união irá passar por uma recuperação, apenas para futuramente afundar-se em novas crises, ou, seguindo o trajeto do turismo, caminhar para um cenário cada vez mais incerto, contando ainda com a possibilidade de uma segunda onda da doença.

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